Qi (energia) no Tai Chi Chuan

O conceito de Qi (energia) é central no Taijiquan (Tai Chi Chuan), e fundamental em muitos aspectos da cultura Chiinesa, mas ainda é surpreendetmente mal compreendido no Ocidente. Dados os profundos enganos de interpretação, não é inesperado o debate infrutífero sobre se o Qi existe ou não. Por que infrutífero? Porque é um exercício fútil de etnocentrismo – julgar os conceitos de outra cultura do ponto de vista da sua prórpia, como se esta fosse o referencial padrão.
O conceito de Qi está presente no cotidiano da cultura Chinesa. É parte da língua, do Taijiquan (Tai Chi Chuan), da Racionalidade Médica, dos esportes, Nutrição, e muitas outras áreas. Não há portanto questão a respeito da existência de Qi, existe apenas a questão de como melhor transpor o conceito, e não simplesmente traduzir a palavra, para que possamos compreender a idéia.

Qi foi primeiro traduzido para um idioma ocidental como “energia”. Pode-se debater se é uma boa ou má tradução, e já mudei de idéia algumas vezes. A língua chinesa é composta de imagens desenhadas, são os pictogramas que chamamos popularmente de caracteres. A imagem para Qi mostra o vapor d´água resultante do cozimento do arroz, levantando a tampa da panela. Outra imagem comumente associada é o vapor subindo em forma de névoa de uma floresta úmida em direção ao céu, como às vezes é visto pela manhã. O termo Qi também era usado para referir-se aos efeitos do céu sobre a terra, incluindo o sentido meterológico, para previsão de colheitas.
Se lermos o Daodejing (Tao Te King), encontramos:

道生一,一生二,二生三,三生萬物
O Dao dá origem ao Um
O Um dá origem ao Dois
O Dois dá origem ao Três
O Três dá origem à dez mil coisas

“Um” siginifca o Dao (que origina-se de si mesmo), “Dois” significa o Yin-Yang, “Três” significa Yin, Yang e a tensão entre eles resultante da sua existência – que é o Qi, e “dez mil coisas” significa todo o universo manifesto. O vapor subindo de uma floresta para o céu é uma representação visual da tensão entre o Yin e o Yang, dos quais terra e céu são as imagens mais fundamentais.

Em Acupuntura, Qi está relacionado aos processos corporais. Os desequilíbrios das funções orgânicas acontece com a insuficiência ou excesso e má circulação do Qi, e são chamados de Deficiência do Qi, Estagnação do Qi, etc. Há sistemas de escolha de pontos para a composição de prescrições de Acupuntura que levam em conta a influência do céu sobre a terra no momento do nascimento de uma pessoa.
Qi é assim um termo que refere-se a conceitos relacionados de modo muito prático à energia do alimento, que aparece sob a forma de força muscular; a funções orgânicas sutis relacionadas aos órgãos, que podem ser reguladas puncionando-se pontos específicos na pele; a um tipo de ordem natural no universo, que é refletida em tudo. O significado do termos está sempre relacionado ao contexto.

Poder-se-ia argumentar que esta é uma definição larga demais, e ter-se-ia razão. Para encontrar sentido em tudo isto, é preciso escolher um contexto. Há interseções, mas nem tudo que se aplica a um contexto pode ser transposto para os outros. Também temos muitas palavras assim em nossa língua, basta pensarmos na questão.

Escolhendo um contexto

Aqui, vamos nos concentrar no contexto do Taijiquan (Tai Chi Chuan), onde Qi é uma entidade onipresente. Todo aluno sonha em ser capaz de dirigir o Qi, e assim multiplicar a sua força física. Muitos professores falam sobre “primeiro mover o Qi, e então permitir que o corpo o siga”. Até quando ensinamos exercícios básicos no Taijiquan (Tai Chi Chuan), costumamos narrar para os alunos o caminho da circulação do Qi, ou ao menos explicamos se o Qi está indo para as extremidades ou retornando ao centro.
Primeiro, precisamos estabelecer premissas comuns para evitarmos fantasias:

  1. Tudo que existe está, pode definição, dentro da natureza – não existe nada “sobrenatural”. Assim, o Taijiquan (Tai Chi Chuan) está dentro dos confins das leis naturais descritas pela Física.
  2. Especialmente no Taijiquan (Tai Chi Chuan), onde a Naturalidade é o primeiro princípio, é importante lembrar que todos os processos acontecendo são naturais para o seu corpo. Nada no Taijquan desafia o funcionamento fisiológico do corpo descrito pela Biologia.
  3. Qi não é, obviamente, um fluido etéreo indetectável que circula no seu corpo e tem poderes mágicos. Isto é só um mito. Desculpo-me por mencionar isto, mas você ficaria surpreso em saber quantas vezes eu tive que explicar “não, isto não tem nada a ver com Taijiquan (Tai Chi Chuan), isto é só um truque como os que você vê em mágica de circo”.

Se você perguntar a qualquer Físico, ele lhe dirá que só existem 4 forças na Natureza: eletromagnetismo, gravidade, e duas outras que só operam dentro dos átomos. Isto quer dizer que absolutamente toda a sua experiência diária é explicável apenas com eletromagnetismo e gravidade. No entanto, a gravidade só é relevante quando há pelo menos um objeto muito massivo envolvido, como na interação entre um planeta e você. Você pode sentir a gravidade entre você e a Terra, mas não consegue sentir a atração gravitacional entre você e uma mesa ou ou carro, pois ela é fraca demais. Então, todas as interaçãoes que você sente entre você e todos os objetos, exceto o planeta, são eletromagnéticas em sua natureza. Tudo que você sente é devido aos elétrons nos seus átomos repelindo os elétrons na superfície dos outros átomos, porque eles têm todos carga negativa.
Mas você não pode encarar a sua vida cotidiana assim. Você tem que pensar, por exemplo, sobre atrito. Se você for comprar sapatilhas para escalada livre, você pensará, “preciso de sapatos com boa adrência, que não escorreguem”. Você passa a mão na sola das sapatilhas e sente se eles agarram – você não começa a fazer contas matemáticas de Física Quântica, você recorre à uma abstração de nível mais alto e pensa em termos de atrito. Podemos dizer que a própria Física constrói abstraçóes sobre conceitos mais básicos: Momento Angular, por exemplo, pode ser visto como a aparência da inércia na rotação de um corpo rígido.

A Química é construída sobre a Física. Seria impossível na prática calcular todas as interações de uma reação química, embora em princípio tudo seja descrito pela Mecânica Quântica. Assim, recorremos à uma abstração de um nível mais alto, quando nos distanciamos um pouco, e criamos a Química.
A Biologia é construída sobre a Química. Não conseguiríamos descrever tudo que acontece no corpo de um ser humano usando apenas Química, e ainda ter uma visão global do funcionamento deste como um organismo. Temos que nos distanciar ainda mais, e ver as células, os tecidos e os órgãos, para compreender como um ser vive. É tudo Química, que é na verdade Física, mas a Química e a Física não nos dão a visão do todo.

Simultaneamente, a cultura e a ciência Ocidentais têm uma tendencia inata a analisar tudo: tudo processo é quebrado até as suas menores partes constituintes, suas funções estudadas, e então tudo é colocado de volta no lugar. É assim que a maioria de nós estuda o movimento do corpo na escola: no seu braço por exemplo, o bíceps é usado para flexão, e o tríceps é usado para estensão. Na perna, o bíceps femural é usado para flexionar a perna, e o quadríceps para estendê-la. Isto somente é verdade, no entanto, se você isolar o braço ou a perna do resto do corpo todo.
A Cinesiologia é construída sobre a Biologia. Precisamos distanciar-nos do nível dos tecidos para vermos como o corpo se move. No entanto, ao mesmo tempo em que nos distanciamos, mantemos a nossa tendência de quebrar o todo em pequenas partes. Assim ficamos atolados num modelo de movimento corporal que leva as partes constituintes em consideração – o que está bem – mas que esquece-se do todo. Como cada parte afeta as outras, no extremo oposto do corpo? Como a estrutura do corpo é mantida através da enorme gama de movimentos de que somos capazes?
A ciência Ocidental não tem ainda uma boa resposta para estas perguntas. Avanços estão sendo feitos, especialmente na frentes dos Trilhos Anatômicos e da Tensegridade (Integridade Tensional), mas um modelo completo ainda não foi proposto. Ao aplicarmos nosso conhecimento ao desporto, ainda estamos confinados ao nível de “como este membro se movimenta”.

Como compreender o que significa Qi

Vamos dar um passo atrás e considerar o contexto histórico. Há documentos históricos chineses já de aproximadamente 500 a.C. que dizem-nos como usar exercícios para promoção da saúde. No século VII, Médicos na China estavam criando conjuntos de exercícios físicos, e prescrevendo-os como meio de fortalecer a saúde de seus pacientes, ou de curá-los de adoecimentos.
A cultura Chinesa antiga tinha uma abordagem diferente da Ocidental. Ao invés de quebrar o todo em pequenas partes, o paradigma era de que o microcosmo reflete o macrocosmo. Isto quer dizer que um ser humano era visto como um reflexo completo da Natureza, e embora estudar tecidos individuais não fosse um rpoblema em si, a abordagem principal era de considerar o corpo como um todo – da mesma forma como Yin e Yang são uma unidade, e como céu e terra são uma unidade. O Taijiquan (Tai Chi Chuan) espelha esta visão.
As pesquisas experimentais não eram do tipo “como o braço se dobra”, mas sim “como Yin e Yang aparecem no corpo” e “como podemos seguir a Natureza, de modo a mover todo o corpo otimamente”. Não fazia sentido tentar analisar (quebrar em partes). O que fazia sentido para o Taijiquan (Tai Chi Chuan) era aplicar as leis da Natureza, como então conhecidas, à unidade indivisível do corpo humano.

Há uma imgem mais ampla aqui. De modo a compreender o Taijiquan (Tai Chi Chuan), a cultura Ocidental precisar subir mais um degrau de distanciamento, e abandonar a questão de “como se move este membro”.
Quando subindo a abstração da Física para a Química, precisamos criar um conceito novo, o de reações químicas. Então subindo da Química par a Biologia, precisamos do conceito de células, e então de tecidos e de membros. Ao mesmo tempo precisamos, para podermos operar na realidade cotidiana, adicionar conceitos saindo do eletromagnetismo para a fricção, e então para força muscular.

Com treinamento muito especializado, e com bastante tempo deste, qualquer pessoa é capaz de desenvolver uma sensação muito específica, de como mover o corpo do modo que o Taijiquan (Tai Chi Chuan) presecreve. Poderíamos dizer que esta sensação é um desenvolvimento especial da propriocepção. Nós chamamos esta sensação bastante real, que é parte da experiência cotidiana de todo aluno avançado de Taijiquan (Tai Chi Chuan), de Qi – tão real quanto o atrito, ou a força muscular.

Não é uma como uma prova de Física na escola

Você pode estar pensando, “sair de Física Quântica para movimentos musculares, aí já é esticar demais – caia na real e fale de mecânica”. Você está certo. Mas preciso lembrar que a Física que você aprende na escola, e suas aplicações, partem de simplificações gigantescas. Quase tudo que alguém que não é um Físico profissional aprende parte da premissa de corpos rígidos ou perfeitamente elásticos, com zero dissipação de energia por calor. As forças são exercidas por cabos indeformáveis, aplicando-as em pontos unidimensionais, e são quase sempre lineares.
Nada parecido com isso acontece no corpo humano, especialmente não durante o Taijiquan (Tai Chi Chuan). Os cabos exercendo forças sofrem deformações, que por sua vez afetam sua performance, continuamente. Eles são feitos de materiais cujas propriedades não são uniformes (músculos, tendões, ligamentos e fascia), as forças tem componentes espirais, são exercidas sobre superfícies irregulares de ossos muito irregulares; e os próprios ossos não são totalmente rígidos se há cartilagens envolvidas. Nenhuma junta é uma dobradiça perfeita, sempre há alguma pronação ou supinação mesmo que mínimas. Finalmente, o corpo é tudo menos perfeitamente elástico, pois está dissipando energia na forma de calor todo o tempo.
Usar aproximações da Física do ensino médio para descrever o movimento do sistema musculo-esquelético humano, e então tentar discutir resultados refinados de milênios de pesquisa empírica condensados no Taijiquan (Tai Chi Chuan) não é uma abordagem séria, e só pode resultar em inconsistências.

Praticar Taijiquan (Tai Chi Chuan) é simples

Não há necessidade de crer em mitos. Nada desafia as leis naturais. Por outro lado, para um praticante hábil de Taijiquan (Tai Chi Chuan), a experiênica do Qi é tão real quanto a das forças musculares. Durante a prática, se ajudá-lo, você pode imaginar o Qi como se fosse um fluido ou gás, não há grande dano nisso, embora não seja necessário. Apenas mantenha sua mente focada em cultivar as causas, e não em procurar os efeitos, especialmente sensações popularmente descritas como sendo da circulação de energia.