Todo sistema marcial inclui um método para gerar força mecânica. Este método pode ser simplório, como por exemplo utilizar apenas a força muscular do membro diretamente envolvido num movimento: a força do braço para desferir um soco, ou a força de uma perna para desferir um chute. Pode ser um pouco mais elaborado, como no caso de usar-se a inércia do corpo para aumentar a força de um golpe: por exemplo, girar o corpo em torno do eixo vertical enquanto desfere um soco, para aumentar a velocidade do punho, e consequentemente o momentum do mesmo, tornando seu impacto mais eficiente. O objetivo de um método para aumentar a força do corpo além daquela imediatamente disponível à primeira vista é óbvio: contra um inimigo minimamente treinado apenas técnicas de alavanca são insuficientes, é necessário que a força que opera a alavanca seja grande o bastante para tornar a técnica aplicada irresistível, ou o impacto de uma pancada devastador.
As artes marciais na China e no Japão alcançaram um nível de grande profundidade no que diz respeito ao método de gerar força. Tanto as artes marciais externas quanto as ditas internas desenvolveram métodos altamente detalhados e precisos de mover toda a força disponível no corpo e focalizá-la no ponto de aplicação, seja numa chave, seja num impacto. A elaboração cada vez mais refinada destes métodos pode ter sido um fator contribuinte para a composição de uma das facetas do conceito de Qi. Os exercícios disponíveis podem ser chamados, às vezes de modo intercambiável, de Qigong ou de Neigong, termos que significam “trabalho sobre o Qi” ou “trabalho interno”. No Taijiquan (Tai Chi Chuan) pode-se dizer que dois exercícios compõem o Qigong básico: Zhanzhuang e Chansigong.
Desenrolar o fio de seda
Chansigong significa literalmente “desenrolar o fio de seda”. Chansigong é na verdade o princípio de movimento que deve estar constantemente presente durante a execução da Laojia, e de qualquer outra forma ou movimento do Taijiquan (Tai Chi Chuan). Antigamente não existia um treinamento em separado de Chansigong, o princípio era praticado durante a repetição das formas, e aprendido naturalmente. Ocorre que no passado o Taijiquan (Tai Chi Chuan) era ensinado somente dentro do meio familiar e a dedicação exigida era de tempo integral, o número de repetições da Laojia que um aluno realizava por dia era grande. Mas na atualidade o Taijiquan (Tai Chi Chuan) passou a ser ensinado a amadores, e a dedicação menor destes tornou muito difícil que aprendessem o princípio de movimento durante as formas, devido à grande complexidade do movimento do corpo durante as mesmas. O Grã-Mestre Chen Xiaowang resolveu então oferecer uma didática mais palatável, e criou a partir dos movimentos das formas exercícios isolados com o objetivo de ensinar o Chansigong de maneira mais direta.
O movimento do centro do corpo pode ser didaticamente explicado como se fosse realizado em torno de dois eixos imaginários distintos: um movimento em torno do eixo que passa pelo Dantian (logo abaixo do umbigo), em direção à frente e paralelo ao chão, e outro em torno do eixo que passa de um lado ao outro dos quadris, também paralelo ao chão. Esta divisão, deve-se frisar, é didática e não deve ser tomada rigidamente pelo aluno, pois durante as formas o movimento do corpo é na maioria das vezes em torno dos dois eixos simultaneamente. Além disso o movimento em torno do segundo eixo citado acima requer um grau de evolução bastante avançado.
O Chansigong é um exercício repetitivo, que é praticado exaustivamente de modo a treinar o corpo em duas habilidades: primeiro, em manter a estrutura durante o movimento e não apenas durante o Zhanzhuang; segundo, em desenvolver a força em espiral. Existem vários tipos de exercícios compondo o Chansigong, escolhidos para treinar a espiral em torno dos dois eixos separadamente e também simultaneamente.
O nome Chansigong é uma referência ao ato de desenrolar o fio de seda de um casulo de bicho-da-seda, e é usado porque durante este exercício é necessário manter um grau exato de força e relaxamento, pois se for usado excesso de força o Qi se “parte”, mas se for usado excesso de relaxamento o Qi se emaranha e perde-se a conexão. Mas o que significa fio de seda, na prática do Taijiquan (Tai Chi Chuan)?
Força em espiral quer dizer que a força que é desenvolvida pelo corpo durante a prática do Taijiquan (Tai Chi Chuan) enrosca-se em torno dos membros, e não é simplesmente a extensão ou flexão de uma articulação com alguns músculos agindo para mover uma alavanca, mesmo quando o movimento resultante visto por um observador externo parece retilíneo. Um soco, desta forma, não se limita à extensão do braço e antebraço causada pela contração do tríceps, e nem é suficiente incluir na análise o movimento do tronco em torno do eixo vertical – estas são simplificações que nem arranham a superfície do que é a força em espiral. A espiral começa dentro do centro do corpo, e o praticante com alguma experiência pode sentir que o movimento do braço em torno do seu próprio eixo é causado, comandado, e está mecanicamente ligado ao movimento do centro do corpo, que se reflete no movimento da musculatura da região em torno da juntas coxo-femurais, se espalha pela região lombar e pelo abdômen, pela região dorsal e peito, e finalmente expressa-se pelo braço e punho.
Ao mesmo tempo a mesma espiral propaga-se pelos dois lados do corpo e por ambas as pernas – quando uma parte do corpo se move, todo o corpo move-se em consonância, num movimento único. A espiral deste exemplo, por sinal, não é em torno do eixo vertical, embora o tronco termine girando em torno de um eixo vertical – a espiral de força neste caso, na região do centro do corpo, em torno do eixo que passa pelo Dantian paralelamente ao chão (a grosso modo). O tronco está girando em torno da vertical, se olhado do exterior, mas a musculatura interna ao corpo está girando em torno de si mesma, de acordo com a direção de cada feixe. Desta forma é fácil verificar que a espiral a que nos referimos não é o movimento circular visível externamente, mas sim o movimento muito pequeno dos músculos dentro do corpo.
O que se chama de fio de seda é o que liga mecanicamente as espirais dos inúmeros feixes de músculos do corpo, e que faz com que todas estas espirais sejam um só movimento, uma só espiral. Alguns pensam que desenrolar o fio de seda refere-se à aparência circular do movimento das mãos durante os exercícios, mas isto é um erro. Fio de seda refere-se às conexões dentro do corpo que são treinadas pelos exercícios. A rigor estas conexões são chamadas de harmonias externas, e fazem parte das seis harmonias. Elas são ditas externas porque envolvem a parte material e visível do corpo, e são: as mãos estão em conexão com os pés, os cotovelos estão em conexão com os joelhos, e os ombros estão em conexão com os quadris. O fio de seda é o que torna estas conexões reais e concretas, e não apenas fruto da imaginação. O movimento dos ombros e quadris, uma vez que estas partes sejam unidas pelo fio de seda, passa a ser mecanicamente ligados (o mesmo ocorre com as mãos e pés, e cotovelos e joelhos). O fio de seda é esta ligação mecânica. Uma vez conectado o fio de seda, ele é muito frágil, e qualquer pequena perturbação pode quebrá-lo: no início basta uma mínima distração da concentração do aluno. Com o passar dos anos de treino, o fio de seda se fortalece, e passa a ser uma característica natural da postura do aluno, mas ainda é possível quebrar a conexão com um empurrão, por exemplo. Mas o potencial de fortalecimento do corpo conectado pelos fios de seda é muito superior ao do corpo que sabe usar apenas o membro diretamente envolvido em um movimento. Conforme o aluno progride o fio de seda fica cada vez mais forte, até que nem mesmo um oponente forte pode partí-lo. É neste ponto que começa a ser possível aplicar as técnicas do Taijiquan (Tai Chi Chuan).